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Quando o verão se insinua no sol abrasador da meia-tarde de um sábado silencioso
deste início de novembro, apesar de o canto dos sabiás afirmar, categórica e harmoniosamente, estarmos em plena primavera, ainda uma vez me surpreendo com a rapidez da viagem desgovernada do tempo e dos estragos nem sempre bem demarcados que vão sendo feito na sua passagem, na maior parte das vezes sem chances de conserto ou de eventual correção de rumos.
Os acessos aos ramais que ficaram para trás se tornaram inacessíveis, não raro pontos obscuros e empoeirados. As retas e curvas, que virão, são insondáveis, mas de forma velada se anunciam trevosas. E, no entanto, é preciso resistir, é preciso não desistir; é necessário acreditar na possibilidade quase preclusa dos sonhos que foram se evolando pelos caminhos percorridos.
Em algum lugar da nossa consciência, em algum encardido escaninho da alma, certamente, há uma baça réstia de teimosa esperança nos dizendo que precisamos prosseguir, não importa quão claudicante seja essa esperança, não importa quão esfarrapada ela esteja.
É necessário - nossa intuição nos diz - que mantenhamos acesa essa tênue lamparina anímica, por que dela, em algum momento da manhã, nascerá a chama que nos unirá e nos transformará no incêndio redentor do futuro, pois, como perguntou o poeta turco Nazim Hicmet, "Se eu não me queimo, / se tu não te queimas, / se nós não nos queimamos, / como haveríamos de produzir o incêndio que iluminará o futuro da humanidade?".
É por essa esperança que me faço irresignado, que prossigo, que resisto, que insisto, que me proponho a ser graveto no incêndio que quero ajudar a provocar. Pelo futuro dos meus netos e pelo anelo de um país que supere as diferenças que queimam na carne feito ferros em brasa, que vença o ódio e as desigualdades. De um país que seja múltiplo, vário; que seja de todas as cores; de todos os credos; de todas as paixões.
De um país que seja efetivamente plural. De um país, cujas entranhas hoje corroídas pela pobreza e pela miséria, que seja pródigo na partilha da educação, da saúde e da riqueza. Da riqueza que todos nós produzimos para deleite de uns poucos senhores da vida e da morte de um quarto de nossa gente. É por esse esgarçado sonho que prossigo, certo de que é possível, em algum momento de nossa história, sermos melhores, mais fraternos e mais justos do que somos e de que a paz social ainda amalgamará as relações entre nossos irmãos.
Não sei, talvez seja demasia, mas, mesmo assim, quero convidar a amiga e o amigo leitores a sonhar comigo este sonho improvável de um Brasil de todos, sem as distinções que nos afastam e nos desigualam, sem salvadores da pátria e sem populistas atrabiliários de quaisquer matizes ideológicos a tutelar nossa esperança. Se nos incendiarmos juntos - e, por favor, isto é uma metáfora -, talvez seja possível tornar reais os nossos sonhos. Pelo bem de nossos filhos e netos e pelos que vierem depois deles.